Declaração de Estado de Cairo Braga, Maio de 2016

Venho por meio desta declarar o meu estado no presente mês de Maio do ano 2016, como conseqüência de acontecimentos dos últimos meses e como causa dos desdobramentos a serem descritos nesse documento.

Formalismos falsos de lado, esse texto é um desabafo tão organizado quanto possível do que eu venho passando e é direcionado especialmente a amigues e colegues, mas não somente, já que estou usando essa plataforma pública do meu blog pessoal como meio de mensagem.

Alguns de vocês devem ter percebido que eu estou muito mais silenciosa, distante e ineficiente na comunicação que o meu normal. Que ando recusando ou deixando compromissos de lado sem grandes explicações, talvez até de maneira rude e aparentemente displiscente. Aqueles poucos que têm me visto e conversado devem ter percebido que estou emocionalmente instável e introspectiva. Tudo isso vêm acompanhado de situações e questões pelas quais eu peço desculpas aqui.

Em Novembro passado eu perdi o emprego fixo que tinha, adiando pela enésima vez meus planos (e sonhos) de ir morar sozinha. Apesar de ser uma frustração familiar por repetição, dessa vez as coisas bateram diferente. Eu ainda estava me recuperando das heranças emocionais de uma faringite bacteriana que me nocauteou na semana do meu aniversário de 25 anos e me prendeu em casa por quase 15 dias, dos quais os primeiros 4 da infecção me tiraram a voz e as forças. No meio desses 15 dias, um dia antes do meu aniversário, eu tinha uma audição para tentar ingressar no Coral Livre da Cidade de São Paulo, uma situação para a qual eu vinha me preparando há mais de um mês. Não pude comparecer, obviamente. Eu também tinha planejado comemorar meu aniversário em diversos eventos pra poder ver e abraçar o maior número de amigos possível (além é claro dos meus dois namorados, já que esse seria meu primeiro aniversário com um deles). Completei meus 25 anos com febre, dor, raiva e tristeza. E, me recuperando, 15 dias dentro de casa não me serviram para fazer de produtivo. Mas me serviram pra mostrar que até mesmo uma bactéria desgraçada pode causar efeitos psicológicos profundos. Foram 15 dias com dor física e silêncio dominante. Tudo que eu podia fazer por mim mesmo era pensar. Pensar. Pensar. Pensar sem parar um segundo. Foi bom pra resolver algumas inseguranças e incertezas e traçar planos. Mas o gosto do primeiro aniversário amargo da minha vida não passou tão rápido. E os planos, bem, eu disse lá em cima o que aconteceu com o maior deles.

Em Dezembro eu consegui me por a produzir nos meus projetos pessoais, amigos me conseguiram alguns freelas e eu recuperei algo do meu fôlego pra tentar fechar o ano do calendário de uma maneira esperançosa e positiva. Curti ao máximo os amigos que pude ver e abraçar, aprontei minhas artes pela noite da cidade com sucesso e muito bem acompanhada, revivi, enfrentei e superei mais inseguranças e culminei numa virada de ano que me pôs num gás ótimo pro começo de 2016: eu tava com um single pronto pra ser lançado (oriundo da frustração da audição perdida), a abertura do meu selo estava começando a acontecer de fato com artistas mandando músicas pra fazer parcerias, meu portifólio e CV lindos e prontos pra serem divulgados com muita cara de pau e sem vergonha nenhuma. Até que chegou o dia de lançamento de “Sadness Is A Blessing”.

Na noite do 11 de Janeiro eu fui summonado às pressas à casa da minha avó materna pela minha mãe pois meu avô estava passando muito mal e precisava ser levado ao hospital. Eu ficaria com minha avó para acompanhá-la, já que há algum tempo ela está num quadro inicial de demência, com problemas sérios de memória e episódios alucinatórios imprevisíveis. Por sinal, o “passar mal” do meu avô foi um episódio alucinatório, mas ele também estava com muita febre e reclamava de dores pelo corpo. Como depois dos 60 anos várias coisas no nosso corpo podem causar episódios alucinatórios, não podíamos concluir nada.

E aqui estou eu, 4 meses depois, acorrentado naquela noite de 11 de Janeiro. Meu avô está internado numa clínica especializada em idosos pois seu quadro de demência é avançado e irreversível e o efeito no seu corpo foi muito grave. Ele chegou nesse estado pois entrou em depressão e escondeu seus episódios de surto de todos nós, inclusive da minha avó. Ele parou de comer e começou a tomar remédios indiscriminadamente. Minha avó está aqui em casa, sob a minha responsabilidade na maior parte do tempo pois minha mãe e minha tia têm que trabalhar e resolver todo o resto da situação (clínica, médicos, casa dos meus avós). Ela não tem memória recente e basicamente revive o mesmo dia todos os dias, com pequenas diferenças. Isso agrava as neuras e paranóias, que são um problema que ela tem desde sempre, segundo minha mãe (e as minhas memórias confirmam). A pior delas é a eterna prisão de ventre, que todo dia se resolve quando ela sai triunfante do banheiro, comemorando, pra dali a meia hora voltar numa reclamação incessante sobre como ela está com dor por não ir no banheiro há mais de 15 dias. Todo dia.

Conviver com isso todo dia está me fazendo mal e, temo eu, vai deixar seqüelas. Eu não fui preparada pra essa situação, eu simplesmente me vi nela e estou preso a ela. O “isso” é a situação e a condição da minha vó. Mas conviver com ela também está sendo horrível. Ela passa boa parte do dia vendo TV (do mesmo jeito que eu passo boas parte do dia no computador: ambos não temos muito mais o que fazer nessa situação conjunta), não raro são programas péssimos vespertinos ou noticiários sensacionalistas. Mas o problema é que ela faz todo comentário possível sobre as pessoas na tela, usando o seguinte repertório pra criticar: feia, gorda, bicha, sapatão, preta, japonesa. A minha avó é uma mulher negra, pobre e que trabalhou a vida toda. Eu não vou cobrar dela a mesma visão de mundo que eu tenho, muito menos agora em que ela não lembra o que comeu no almoco, literalmente. Mas eu estou escutando essas coisas diariamente de uma das pessoas que me criou, sendo quem eu sou hoje. Eu não deixei de amar a minha avó nem de cuidar dela, mas essa convivência forçada tá me expondo ao pior dela e eu não estou gostando nem um pouco. E eu repito: a repetição é uma tortura. Todo dia. Todo dia as mesmas reações às mesmas repostas às mesmas perguntas. Todo dia as mesmas paranóias com as janelas do apartamento (que fica no oitavo andar). Todo dia um desespero pra saber porque minha tia não chegou em casa, afinal já são 15h! Nada disso é culpa dela e eu me esforço pra não transparecer a minha irritação. Mas isso não elimina o efeito péssimo que tem em mim.

Existe uma coisa que deixa tudo isso mais difícil: não conseguir emprego desde Novembro. Essa merda-não-nova é o colchão onde a merda-nova descrita no parágrafo acima esta firmemente deitada, e tudo isso empilhado em cima de mim. Em Dezembro eu completei 4 anos da graduação e eu ainda estou lutando pra iniciar minha carreira. Uma carreira que vai ter que começar como paralela pois a minha situação não permite que eu limite a minha busca por trabalho só naquilo que eu quero fazer o resto da vida. Eu tenho habilidades variadas e quero fazer várias coisas ao longo da vida? Sim! Meritocracia existe? Não! Cada vez que eu tenho que voltar a procurar emprego eu acho que vai ser diferente mas é sempre a mesma bosta. Eu sempre acabo me questionando o que há de errado comigo, o que eu estou fazendo de errado. Eu sei que eu sou talentosa, eu sei que eu sou boa nas coisas que posso fazer enquanto trabalho, eu sei do que eu sou capaz e do que eu posso ser capaz amanhã e depois. Eu sou boa pra caralho no que eu faço e eu faço muito bem tudo aquilo que me proponho a fazer. E olha que eu ainda estou no começo da minha jornada de aprendizado, eu ainda quero saber e saber fazer muito mais coisas de muito mais jeitos com muito mais pessoas e muitos lugares mais. Mas eu sei que da minha posição enquanto profissional eu sou boa e não razoável. Meu portifólio e meu CV estão aqui nesse site pra vocês verem, inclusive. E tenho talentos que não dá pra por no CV nem no portifólio porque são imateriais demais. ENTÃO O QUE EU TO FAZENDO DE ERRADO QUE NINGUÉM TÁ VENDO ISSO PRA ME CONTRATAR??? E aí minha racionalidade me dá as respostas que eu já sei porque aprendi na vida e com outras pessoas, eu me acalmo e volto à caça. Mas depois tudo isso volta porque nada muda. Todo dia. Todo dia.

Essas duas espinhas dorsais malditas que estão conjunturando minha vida desde Janeiro, quando postas pra girar, todo dia, juntas, elas estão me desmontando, pedaço a pedaço. Conseguir um emprego não é mais somente uma questão de sustento pessoal, agora também é a única coisa que vai me tirar dessa situação de convivência forçada e que tá fazendo mal pra minha saúde mental. E todo dia eu me paralelizo na minha própria vida e tento várias coisas pra não sucumbir e me lembrar de que eu ainda sou eu e que eu ainda posso ser quem eu quero e fazer as coisas que eu quero. Eu faço o podcast com meus amigos. Eu administro o selo. Eu assisto séries e filmes. Eu jogo. Eu fico com meus namorados tanto quanto possível. Eu fujo de casa aos finais de semana e deliberadamente esqueço tudo isso, tanto quanto posso. Eu me mantenho sã com alegrias a conta-gotas. Mas todo dia (e toda volta pra casa) reserva uma rasteira pra me lembrar que eu não estou sendo paciente por livre e espontânea vontade ou por consciência, mas sim que eu não tenho escolha e é isso. E meu humor flutua. E eu me irrito com facilidade. E eu choro. E eu passo um dia inteiro sem sorrir. E eu não tenho vontade de fazer nada porque nada serve de nada. E eu recebo boas notícias, fecho pequenas gigs, e não consigo sentir esperança nisso, só pensar “pelo menos não vou ficar zerado pelos próximos 7 dias”. E tudo parece um esforço e um incômodo. E eu não posso aceitar outras gigs porque não posso sair de casa livremente nem me dedicar em casa a algo que exija atenção por muitas horas porque tenho que dar minha atenção à minha avó. E todo dia. E todo dia.

Eu sei que nesse imbróglio todo eu tenho uma função na família e é uma função de suporte importante porque não existem recursos pra eu simplesmente ficar de boa e minha mãe contratar uma cuidadora em tempo integral. Eu não estou ignorando isso, muito pelo contrário, isso é o pino da minha granada, é o que me impede de uma implosão: saber que apesar de tudo eu estou sendo útil de alguma forma e eu não vou ser ingrato (por isso inclusive que não reclamo pra minha mãe e minha tia, porque sei que elas também estão cortando um dobrado nisso tudo; mas eu ainda sou o lado mais fraco). Mas eu ainda sou eu, uma pessoa numa determinada posição na vida, no tempo e no espaço, eu tenho 25 anos, eu borbulho nos meus sonhos, eu tenho uma vida pela frente da qual eu me recuso a abrir mão por quem quer que seja, eu ainda tenho que cuidar de mim, eu não quero terminar como a minha vó e meu vô, eu ainda sinto as coisas, por mais que não pareça. Esse texto é pra garantir que isso também não passe despercebido porque eu simplesmente não agüentava mais segurar essas coisas que eu to sentindo. Raiva, tristeza, desesperança, falta de perspectiva, desânimo, insegurança, desequilíbrio, medo… (e nem vamos falar sobre as várias possíveis implicações futuras do Brasil enquanto Estado no meio disso tudo)

Prevejo que meus pais e minha família me questionem do porque eu ter me exposto assim nesse texto e eu já adianto a resposta: pra que eu não tenha mais que repetir essa história pra cada amigo e parente que eu encontro quando perguntam como eu estou (e eu me recuso a fingir que estou bem, e eu me sinto mais mal contando de novo), porque eu me prometi que se isso durasse 3 meses eu ia fazer o que estou fazendo (ainda adiei por mais um mês, olha só) e porque eu quis e ninguém vai me convencer que é errado.

Essa vida ainda é minha e eu não acredito em deus nenhum que vá mudar isso. A minha luta agora é pra manter minha fé em mim mesma.

Esse é o meu estado em Maio de 2016.

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