A NOITE MAIS LONGA (ou) O DIA EM QUE VIREI ESTATÍSTICA

2018 foi um ano horrível pra mim. 2017 foi um ano horrível pra mim. 2016 foi um ano horrível pra mim. a questão aqui não é a total ausência de felicidades, alegrias, amor e todas as outras coisas boas que aconteceram, eu não estou ignorando, minimizando ou as desvalorizando, mas não vou falar delas aqui, pois falei delas em suas ocasiões, é só olhar minhas redes sociais. a questão aqui é que, nos últimos três anos, todas as experiências mais transformadoras da minha vida foram horríveis (sobre 2016, tem um texto anterior; sobre 2017 eu nem quis escrever nada). mas 2018 foi o pior de todos, assim como 2017 foi pior que 2016. 2018 foi o pior de todos, não apenas entre os últimos três que citei, mas o pior de todos os vinte e oito que vivi até o momento.

eu literalmente comecei 2018 com o término de um relacionamento de 3 anos, decisão mútua e pacífica. segui no meio do primeiro semestre com uma paixão avassaladora que terminou muito mal, 5 semanas depois, decisão mútua e litigiosa. continuei no começo do segundo semestre com outro término, de um relacionamento de 4 anos, dessa vez decisão unilateral da outra parte mas felizmente pacífica. segui no meio do segundo semestre assistindo meu país gritar que me odeia pro mundo inteiro ouvir, por meio de um processo eleitoral distorcido e litigioso. terminei vivendo o acontecimento mais extremo da minha vida até então, a materialização do ódio confirmado nas urnas.

exatamente uma semana depois do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, às três da madrugada do dia cinco de novembro, eu sofri uma tentativa de homicídio por motivos lgbtfóbicos. cinco garotos me pegaram (eu estava completamente só) num ponto de ônibus do centro da cidade de São Paulo, simularam um assalto, me jogaram no chão e socaram e chutaram tão somente e exclusivamente a minha cabeça, enquanto me chamavam repetidamente de “bicha” e “viadinho”. sobrevivi pois a covardia de quem eles são era maior do que a que eles estavam exercitando contra mim: ao menor sinal de alguém do outro lado da rua que pudesse ver com mais atenção o que estava acontecendo, fugiram. a “coragem” e a “macheza”, mesmo coletiva, viram vento nos pés de quem não quer sofrer as conseqüências dos seus atos.

quando consegui, me levantei e comecei a pensar no que deveria fazer, enquanto chorava ensangüentada andando de um lado para o outro. o ônibus que eu estava esperando passou logo em seguida e eu pedi que o motorista me orientasse ao posto policial mais próximo. respirei tão bem quanto podia e me fixei na tarefa: conseguir atendimento médico. andei de volta de onde tinha saído: a praça em frente ao Love Story, onde sempre ficam viaturas e policiais vigiando a área. no caminho cruzei com poucas pessoas, nenhuma delas me ofereceu ajuda. “eu não acredito que vou ter que confiar num policial militar” foi o que eu pensei logo antes de pedir ajuda aos policiais militares. fui tratada como se fosse uma passante perguntando “onde fica a rua tal?”, como se nada tivesse acontecido comigo, ou acontecendo, visto que eu estava literalmente pingando sangue. eles me ofereceram uma carona à Santa Casa. e foi uma carona mesmo, eles me deixaram na frente e foram embora, nem esperaram eu entrar. entrei, pedi informações e consegui atendimento.

durante as várias horas de esperas entre etapas do atendimento (eu passei quatorze horas na Santa Casa, ao todo), eu internamente era um malabarista, tentando não deixar cair minha lucidez de raciocínio, tentando lidar com o desconforto generalizado e o baque físico que me fazia querer simplesmente deitar no chão e apagar (adicione a isso o fato de que eu já estava acordada há mais de doze horas), tentando despistar as dores físicas e controlando o choro e a vontade de gritar, berrar mesmo, pois estava num hospital com outras pessoas e não podia deixar meu sofrimento aumentar o delas. enquanto tudo isso acontecia e eu me esforçava pra chorar sem ruído, eu me dei conta que eu não tinha sofrido um assalto violento: tudo ainda estava comigo, incluindo minha mochila, que podia ter sido facilmente tirada de mim a partir do momento que eu tinha sido jogada no chão. celular, carteira, fone de ouvido: tudo comigo e intocado. não era assalto, era ódio. eu tinha sido odiada.

a noção de que tinha de fato sofrido uma tentativa de homocídio só veio três semanas depois do fato, depois que alguns amigos fizeram esse apontamento e eu passei por um processo de admissão completamente devastador: tentaram me matar por causa de quem ou o quê eles acharam que eu era. eles não me conhecem, não sabem meu nome, nunca me viram na vida, não sabem quem eu sou. mesmo assim, a imagem da minha pessoa estranha que eles viram e interpretaram na rua foi o suficiente para fazê-los querer me matar. a eleição do presidente fascista deles (um salve pra minha prima que votou nele pra pra presidente) deu a validação e a permissão suficiente pra eles agirem e tentarem me matar. eu não era uma pessoa, eu era um espantalho que sangrava. e, pra eles, eu tinha que sangrar até não sangrar mais. eu tinha que gritar até não gritar mais. eu tinha que espernear até não me mover mais. mas minha cabeça é dura e eu sobrevivi.

sobreviver é lidar com as conseqüências dos atos dos nossos algozes. eles fugiram do que fizeram, eu não tenho essa escolha. eu vou passar anos identificando as camadas e o peso dos significados desse único fato, alguns bons, alguns ruins, alguns mais complexos que isso. me tiraram o direito à cidade. me tiraram a liberdade de ir e vir. me tiraram um pedaço da saúde mental. rasgaram o meu tecido social. me tiraram uma ilusão esperançosa sobre “civilidade”. romperam minha identidade nacional sem chance de recuperação porque quem não quer mesmo agora sou eu. me mostraram que eu não estou sozinha. me mostraram que sou odiada. me mostraram que sou amada.

de brinde me tiraram a já pouca confiança que tinha na imprensa majoritária. dois jornalistas que me procuraram, eu respondi com disposição, mas que simplesmente pararam de me responder. uma reportagem de TV que não foi ao ar, mesmo realizada, mostrando que o sensacionalismo e a pornografia da violência que sofri só serve às emissoras comerciais de direita que apoiaram abertamente o presidente eleito se não vier acompanhada das minhas idéias e da minha identidade, nem dos posicionamentos políticos e conscientizantes da minha mãe, nem do senso de comunidade e defesa de direitos humanos dos meus advogados. e é por isso que me convenci de que não podia deixar de escrever sobre isso, nos meus termos e do meu jeito. eu sou uma comunicadora e tenho vários meios para transmitir a minha mensagem. essa história é minha, só minha, e quem vai contá-la sou eu.

essa experiência é complexa. eu tenho que lidar com ela, mas não posso deixar minha vida ser pautada por ela. eu devo acolher todo o carinho, amor e cuidado que as pessoas redobraram pra mim por causa dela, mas tenho que lidar com o fato de que tudo isso são lembretes do acontecido e que mexem comigo. quero responder as mais de trezentas pessoas que se comunicaram comigo pra me apoiar, mas ainda não consegui responder a todas porque a disposição pra lidar com os gatilhos de memória é instável. eu sei que talvez eu precise recontar essa história várias vezes ainda, mas eu não quero reviver isso sempre que alguém me perguntar sobre. eu tenho que tentar olhar pros lados positivos da situação, mas eu não tenho que ficar tentando extrair algo positivo de uma tentativa de homicídio como se fosse uma obrigação porque isso só dificulta a aceitação do fato de que eu não vou poder esquecer nunca o dia em que eu virei estatística.

que 2019 seja melhor. por favor.

P.S.: obrigada a todes as amades que fizeram a minha sobrevivência possível ao longo de 2018, família original, famílias escolhidas e amigues! agradecimentos especialíssimos aos meus advogados Evorah Cardoso e Flavio Grossi, que não só advogam mas me apoiam e me acolhem de fato. agradeço também às equipes do DECRADI (Polícia Civil SP) e do NUDDIR (Defensoria Pública SP) pela humanidade no atendimento.

 

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